sexta-feira, 26 de julho de 2013

018 - Estatolatria: a raiz de nossos males
por Alexandre Furlaneto em 11 de agosto de 2005


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Cultura, em sociologia e antropologia, indica o conjunto dos modos de vida criados, adquiridos e transmitidos entre os membros de determinada sociedade. Significa a formação coletiva e anônima de um grupo social nas instituições que o definem, com seu conjunto de valores, crenças e práticas.
Digo isto porque no Brasil, mais do que a adoção de uma ou outra política econômica, mais do que nossos problemas estruturais, mais do que a fragilidade de nossas instituições, nossos reais obstáculos ao desenvolvimento sócio-econômico são de ordem cultural. Estamos permeados de valores, crenças e práticas que, se não inviabilizam, dificultam enormemente o funcionamento de uma democracia e de uma economia capitalista real e desenvolvida.
No conjunto de crenças, valores e práticas que formam a cultura brasileira há um elemento central. Central porque origina, influencia e perpassa os demais componentes com muito mais intensidade do que é por eles influenciado. Denomino esse elemento central e fundante de estatolatria, e ele constitui a raiz da maioria de nossos males, pois, além de legitimar e perpetuar uma série de práticas, influencia inclusive o modo de pensar e ver o mundo de uma significativa parte dos brasileiros.
Estatolatria (Cultura Estatocratica, para mim)  significa a arraigada crença na eficácia do Estado como o ente responsável pela solução de todo e qualquer problema, seja de ordem coletiva ou individual. Esse elemento se formou e se desenvolveu desde antes do nascimento de nosso País e perpassa toda nossa história sem nunca ter sido enfrentado de forma clara. Colocá-lo em debate é a única forma de começarmos a tratá-lo e resolvê-lo.
A.     A História da Estatolatria
A raiz remota da estatolatria se encontra em 1139, data de início da formação do Estado Português. Nesta época, a principal característica do sistema político português é a presença de monarquias fortes e belicistas, que conseguiram unificar o país. Além disso, Portugal sempre apresentou uma capacidade elevada de se propor e realizar grandes objetivos nacionais. Nesta linha, tendo à frente a Ordem dos Templários, os portugueses conseguiram realizar sua primeira grande façanha nacional: expulsar os mouros, se consolidando definitivamente como Estado. Posteriormente, já sem a Ordem Templária (substituída pela Ordem Militar de Cristo), os portugueses seguiram a tradição de propor e efetivar grandes realizações nacionais, sendo as navegações e descobertas a mais significativa delas.
Portugal foi, inegavelmente, a nação que obteve maior sucesso na empreitada dos descobrimentos. Era um Estado que, mesmo com limitações territoriais e populacionais, foi capaz de enfrentar impérios asiáticos, conquistar territórios e desenvolver uma significativa tecnologia. E é esse Estado moderno que aporta no Brasil em 1500, se chocando com diversas nações primitivas, silvícolas e ingênuas. E destaquemos um fato, pois ele será simbólico e fundante em nossa cultura: o Estado e seu aparato chegam ao Brasil antes que a sociedade.
Quando nossa colonização se inicia, não havia qualquer civilização capaz de opor resistência ao Estado Português e seu projeto (diferentemente da colonização espanhola na América Latina). Nossa colonização tampouco apresenta um marcante traço ou motivação religiosos que estimulassem a imigração de famílias (caso da América do Norte). A colonização portuguesa no Brasil foi uma empreitada de homens, solteiros (em oposição ao modelo familiar) e ávidos por fazer fortuna rápida (imediatista), e esses fatores vão, cada qual ao seu modo, marcar nossa sociedade.
Passado a mal-fadada tentativa de implantação do sistema de Capitanias Hereditárias, Portugal implanta o Estado no Brasil através dos governadores gerais e seus séquitos burocráticos. Como exemplo, citamos a vinda do primeiro governador-geral, Tomé de Souza, que desembarca na Baía de Todos os Santos trazendo fidalgos, funcionários públicos, réus, degredados, 600 soldados e plenos poderes conferidos pelo Rei, elencados em um Regimento, além de regras minuciosas que estabeleciam como deveria ser controlada a vida dos colonos, como seriam as concessões públicas, o controle da produção, dos preços e até o que os colonos poderiam ou não vestir (eram proibidos de usar seda e brocados). Nossa colonização foi, em resumo, um projeto que tentou reproduzir o Estado português nas terras daqui. Isso não significa que as nossas mazelas sejam culpa da colonização portuguesa. O único modelo de Estado que os colonizadores conheciam era esse – não poderiam ter implantado qualquer outra forma. Além disso, já gastamos 500 anos de história – tempo suficiente para resolver qualquer problema.
Nossa história começa estigmatizada por este fator: nosso País começa pela montagem de uma estrutura estatal e burocrática, mais forte e melhor organizada que a sociedade. E assim a estatolatria vai se imiscuindo no Brasil, se amalgamando, se desenvolvendo e influenciando nossa formação social, econômica, política e cultural. Uma estrutura estatal forte, organizada, centralizadora e burocrática que não encontra resistência ou limites em nenhuma outra instituição, acaba por criar uma sociedade adaptada a esta estrutura; uma sociedade que desde o berço é incapaz para enfrentar ou questionar a estrutura.
Como defende Hayek, o padrão de interação entre Estado e sociedade é, ao mesmo tempo, causa e efeito das relações entre sociedade e Estado, em uma dinâmica que se retro-alimenta. No Brasil, não há história que preceda ao Estado, não há tradições ou costumes anteriores a ele e que possam impor limites ao seu poder. O fato de que foi o Estado que moldou nossa sociedade faz com que tomemos como normal ou natural a intromissão estatal em todos os campos da vida. A sociedade brasileira nasce tutelada, vigiada, restringida e dependente da burocracia, precisando pedir licença ao Estado para existir.
Esta composição inicial influencia enormemente a posterior evolução. O Estado, praticamente, definiu a forma e a estrutura da sociedade. Além disso, teceu uma imbricada rede normativa, comprimindo a liberdade e a iniciativa dos cidadãos e punindo tentativas de contestação de sua autoridade.
Como Weber classificou, nossa colonização segue o “modelo ibérico”, cuja matriz estrutural é o patrimonialismo português. No patrimonialismo, os poderes locais e associativos estão subordinados ao poder central e sua burocracia. No âmbito econômico, esse modelo tem a crônica característica de atribuir objetivos não-econômicos para a atividade econômica, ou seja, há uma arraigada e infundada prática de direcionar o excedente econômico não para o crescimento ou incremento da produção, mas para o custeio de gastos não-econômicos e sem retorno. Isso acaba por negar a liberdade econômica e aceitar natural e docilmente, quando não solicita ou estimula, a profunda e constante intromissão estatal na economia (por via de instrumentos regulatórios asfixiantes, fiscalismo exacerbado, captação privilegiada de crédito e outras práticas). No âmbito político, esse sistema é marcado pela centralização, burocracia excessiva e tendências absolutistas.      
A estatolatria é tão determinante que, além de orientar o nosso arranjo Estado/Sociedade, sustenta inclusive o padrão dominante de pensamento no Brasil. Resumidamente, a matriz estatolátrica nos relega as seguintes crenças e práticas:
·  A crônica determinação de objetivos não-econômicos para a atividade econômica, não importando se isto representa enormes restrições à liberdade econômica e a livre iniciativa. A estatolatria, no campo econômico, além de criar um campo propício para a invasão estatal à liberdade individual, ajuda a consolidar a prática de apropriação de recursos da sociedade por parte do Estado;
·  O Estado brasileiro ficou, desde sempre, livre para definir seus próprios limites de intervenção. A política acaba por se identificar completamente com a idéia de Estado, que se transforma em fim da ação política, e não meio. Possuímos patológica deficiência para pensar e aceitar a economia e a sociedade se organizando a partir de suas próprias lógicas;
·  O sistema cultural que se origina tendo a estatolatria no centro legitima e reforça no imaginário coletivo um conjunto de crenças e valores que além de referidos ao Estado representam reais obstáculos ao desenvolvimento sócio-econômico. Exemplificando: bem comum, justiça social, desenvolvimento, geração de empregos, crescimento econômico são todos creditados como responsabilidade e missão do Estado. Em contraposição, a estatolatria cria o ambiente propício para a estigmatização da atividade econômica e empresarial. Ou seja, o trabalho é visto como sinal de inferioridade, enriquecimento como condição injusta e lucro como exploração do semelhante.
Como prova do efeito danoso da estatolatria e da existência desse sistema de crenças e valores, podemos citar a recente pesquisa de opinião veiculada pela revista Exame onde, para o cidadão comum, a missão de uma empresa é: 1) gerar empregos; 2) desenvolver o país; 3) desenvolver trabalhos comunitários; 4) justiça social; 5) pagar impostos; (...) 7) dar lucro.
B.     Estatolatria e Política no Brasil
Como visto, a estatolatria faz com que, no Brasil, a política fique umbilicalmente ligada à idéia de Estado, que vira fim em si mesmo. Concomitantemente, como a matriz dominante de pensamento não consegue admitir sociedade e economia vivendo com base em suas lógicas respectivas, o brasileiro acaba por sofrer de uma endêmica necessidade de messianismo. Em outras palavras, o desproporcional poder estatal e sua reiterada prática de invadir qualquer campo da vida consolidaram a
idéia de que:
 o Estado deve e vai resolver todo e qualquer problema do País, sejam eles de que ordem for. O cidadão abdica servilmente de sua liberdade e iniciativa e passa a, de certa forma, aceitar e cobrar uma ação paternalista do Estado como se isso fosse natural ou a única forma de relação possível entre cidadão e aparato estatal.
Ainda no tocante a esta relação, como a invasão estatal, se aceita plenamente, geraria a mais completa asfixia, o brasileiro desenvolveu o chamado “jeitinho”, ou seja, uma forma célere e pouco ortodoxa de escapar das amarras estatais. Não queremos negar que o “jeitinho” possui uma grande importância sociológica, pois é um método que permite a acomodação social sem a necessidade de rupturas traumáticas. O que procuramos atentar é que a onipresença do “jeitinho” revela o seguinte:
a)      o enorme formalismo da sociedade brasileira. Formalismo, como definiu Riggs, é o “grau de discrepância entre o prescritivo e o descritivo, entre o poder formal e o poder efetivo, entre a impressão que nos é dada pela constituição, pelas leis e regulamentos, organogramas e estatísticas, e os fatos práticos e reais do governo e da sociedade”. A reiterada discrepância entre os valores ostensivos, os discursos e as reais atitudes e comportamentos dos brasileiros é constante. Como disse Valverde, “o Brasil é, essencialmente, uma sociedade formalista, preocupada com as aparências e pouco atenta à coerência entre estas e a substância dos atos e fatos”. Estas incoerências são tão freqüentes, tão presentes, tão arraigadas que influenciam nosso modo de pensar a tal ponto que o duplipensar orwelliano chega quase a ser pré-requisito para ingressar em nossa cena cultural;
b)      a constante presença do jeitinho, em suas mais variadas formas, demonstra que, no Brasil, a lealdade familiar e tribal ocupa o lugar dos valores cívicos como norte do comportamento. Lei, ordem, Constituição são elementos que significam pouco em nossa conduta. Com certeza, reside aí uma das maiores dificuldades para a construção e fortalecimento das instituições nacionais, bem como, para a democracia brasileira;
c)      a reiterada prática e aceitação do “jeitinho” nos levaram a desenvolver uma patológica afinidade pelas fraudes. Falsificações, “pirataria”, desrespeito a contratos e a palavra empenhada são atitudes que não sofrem qualquer reprovação moral. Aliás, é provável que os que respeitem a lei e a ordem constitucional sofram mais preconceitos e reprovações morais do que aqueles que as transgridem. Obter vantagens indevidas, praticar contravenções e crimes de pequena monta, levar vantagem em tudo são atitudes que já não nos causam estranheza. Talvez vivamos o processo descrito por Nietzsche e só nos resta dois tipos de pessoas: os super-homens e os últimos-homens.      
No campo teórico, ao se estudar a política, há uma aceitação generalizada e inercial de que o ponto de partida é Maquiavel. A obra maquiavélica, ao fundar o campo da política, o faz justamente a diferenciando e separando da moral. Dissociar a moral da política é aceitar que a prática política não se sujeita a qualquer reflexão ou limite de moralidade. A porta para legitimar nossos crônicos problemas de corrupção, clientelismo e rompantes totalitários está aberta. Paralelamente, fingimos não existir uma série de importantes e clássicos trabalhos e pensadores políticos. Althusius, La Boétie, Van Humboldt, Kirk e tantos outros são ilustres desconhecidos no nosso suposto debate.
No terreno da política propriamente dita, com o fim da ditadura e o estabelecimento de eleições diretas, o marketing eleitoral passou a ter importância desproporcional em um pleito. Em uma sociedade dominada pela estatolatria, onde desenvolvimento, empregos, bem-comum e justiça social são todos tidos e havidos como responsabilidade estatal todo e qualquer candidato ao Executivo é vendido ao eleitor como aquele que irá resolver todos os problemas de uma determinada coletividade (seja o Município, o Estado-membro ou o País). Retórica e slogans acabaram por ser mais decisivos em uma eleição do que projetos ou soluções viáveis. E a participação política, para um enorme contingente de brasileiros, se inicia e se encerra com o voto.
Esse é o cenário que nos cerca e dentro do qual teremos que fazer nossas próximas escolhas.
 As opções são claras:
Ou começamos a superar os obstáculos culturais estatólatras, ou é bem provável que a profecia que sustenta que o Brasil
 “sairia do atraso para a barbárie, sem conhecer o que é civilização

 se concretize.