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Estatolatria: a raiz de nossos males
por Alexandre Furlaneto em 11 de agosto de 2005
© 2005 MidiaSemMascara.org
por Alexandre Furlaneto em 11 de agosto de 2005
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Cultura, em sociologia e antropologia, indica o conjunto dos modos de
vida criados, adquiridos e transmitidos entre os membros de determinada
sociedade. Significa a formação coletiva e anônima de um grupo social nas
instituições que o definem, com seu conjunto de valores, crenças e práticas.
Digo isto porque no Brasil, mais do que a adoção de uma ou outra
política econômica, mais do que nossos problemas estruturais, mais do que a
fragilidade de nossas instituições, nossos reais obstáculos ao desenvolvimento
sócio-econômico são de ordem cultural. Estamos permeados de valores,
crenças e práticas que, se não inviabilizam, dificultam enormemente o
funcionamento de uma democracia e de uma economia capitalista real e
desenvolvida.
No conjunto de crenças, valores e práticas que formam a cultura
brasileira há um elemento central. Central porque origina, influencia e
perpassa os demais componentes com muito mais intensidade do que é por eles
influenciado. Denomino esse elemento central e fundante de estatolatria, e
ele constitui a raiz da maioria de nossos males, pois, além de legitimar e
perpetuar uma série de práticas, influencia inclusive o modo de pensar e ver o
mundo de uma significativa parte dos brasileiros.
Estatolatria (Cultura Estatocratica, para mim) significa
a arraigada crença na eficácia do Estado como o ente responsável pela solução
de todo e qualquer problema, seja de ordem coletiva ou individual. Esse
elemento se formou e se desenvolveu desde antes do nascimento de nosso País e
perpassa toda nossa história sem nunca ter sido enfrentado de forma clara.
Colocá-lo em debate é a única forma de começarmos a tratá-lo e resolvê-lo.
A. A História da Estatolatria
A raiz remota da estatolatria se encontra em 1139, data de início
da formação do Estado Português. Nesta época, a principal característica do
sistema político português é a presença de monarquias fortes e belicistas, que
conseguiram unificar o país. Além disso, Portugal sempre apresentou uma
capacidade elevada de se propor e realizar grandes objetivos nacionais. Nesta
linha, tendo à frente a Ordem dos Templários, os portugueses conseguiram
realizar sua primeira grande façanha nacional: expulsar os mouros, se
consolidando definitivamente como Estado. Posteriormente, já sem a Ordem
Templária (substituída pela Ordem Militar de Cristo), os portugueses seguiram a
tradição de propor e efetivar grandes realizações nacionais, sendo as navegações
e descobertas a mais significativa delas.
Portugal foi, inegavelmente, a nação que obteve maior sucesso na
empreitada dos descobrimentos. Era um Estado que, mesmo com limitações
territoriais e populacionais, foi capaz de enfrentar impérios asiáticos,
conquistar territórios e desenvolver uma significativa tecnologia. E é esse
Estado moderno que aporta no Brasil em 1500, se chocando com diversas nações
primitivas, silvícolas e ingênuas. E destaquemos um fato, pois ele será
simbólico e fundante em nossa cultura: o Estado e seu aparato chegam ao
Brasil antes que a sociedade.
Quando nossa colonização se inicia, não havia qualquer civilização capaz
de opor resistência ao Estado Português e seu projeto (diferentemente da
colonização espanhola na América Latina). Nossa colonização tampouco apresenta
um marcante traço ou motivação religiosos que estimulassem a imigração de
famílias (caso da América do Norte). A colonização portuguesa no Brasil foi uma
empreitada de homens, solteiros (em oposição ao modelo familiar) e ávidos por
fazer fortuna rápida (imediatista), e esses fatores vão, cada qual ao seu modo,
marcar nossa sociedade.
Passado a mal-fadada tentativa de implantação do sistema de Capitanias
Hereditárias, Portugal implanta o Estado no Brasil através dos governadores
gerais e seus séquitos burocráticos. Como exemplo, citamos a vinda do primeiro
governador-geral, Tomé de Souza, que desembarca na Baía de Todos os Santos
trazendo fidalgos, funcionários públicos, réus, degredados, 600 soldados e
plenos poderes conferidos pelo Rei, elencados em um Regimento, além de regras
minuciosas que estabeleciam como deveria ser controlada a vida dos colonos,
como seriam as concessões públicas, o controle da produção, dos preços e até o
que os colonos poderiam ou não vestir (eram proibidos de usar seda e brocados).
Nossa colonização foi, em resumo, um projeto que tentou reproduzir o Estado
português nas terras daqui. Isso não significa que as nossas mazelas sejam
culpa da colonização portuguesa. O único modelo de Estado que os colonizadores
conheciam era esse – não poderiam ter implantado qualquer outra forma. Além
disso, já gastamos 500 anos de história – tempo suficiente para resolver
qualquer problema.
Nossa história começa estigmatizada por este fator: nosso País começa
pela montagem de uma estrutura estatal e burocrática, mais forte e melhor
organizada que a sociedade. E assim a estatolatria vai se imiscuindo no
Brasil, se amalgamando, se desenvolvendo e influenciando nossa formação social,
econômica, política e cultural. Uma estrutura estatal forte, organizada,
centralizadora e burocrática que não encontra resistência ou limites em nenhuma
outra instituição, acaba por criar uma sociedade adaptada a esta estrutura; uma
sociedade que desde o berço é incapaz para enfrentar ou questionar a estrutura.
Como defende Hayek, o padrão de interação entre Estado e sociedade é, ao
mesmo tempo, causa e efeito das relações entre sociedade e Estado, em uma
dinâmica que se retro-alimenta. No Brasil, não há história que preceda ao Estado,
não há tradições ou costumes anteriores a ele e que possam impor limites ao seu
poder. O fato de que foi o Estado que moldou nossa sociedade faz com que
tomemos como normal ou natural a intromissão estatal em todos os campos da
vida. A sociedade brasileira nasce tutelada, vigiada, restringida e dependente
da burocracia, precisando pedir licença ao Estado para existir.
Esta composição inicial influencia enormemente a posterior evolução. O
Estado, praticamente, definiu a forma e a estrutura da sociedade. Além disso,
teceu uma imbricada rede normativa, comprimindo a liberdade e a iniciativa dos
cidadãos e punindo tentativas de contestação de sua autoridade.
Como Weber classificou, nossa colonização segue o “modelo ibérico”, cuja
matriz estrutural é o patrimonialismo português. No patrimonialismo, os poderes
locais e associativos estão subordinados ao poder central e sua burocracia. No
âmbito econômico, esse modelo tem a crônica característica de atribuir
objetivos não-econômicos para a atividade econômica, ou seja, há uma arraigada
e infundada prática de direcionar o excedente econômico não para o crescimento
ou incremento da produção, mas para o custeio de gastos não-econômicos e sem
retorno. Isso acaba por negar a liberdade econômica e aceitar natural e
docilmente, quando não solicita ou estimula, a profunda e constante intromissão
estatal na economia (por via de instrumentos regulatórios asfixiantes,
fiscalismo exacerbado, captação privilegiada de crédito e outras práticas). No
âmbito político, esse sistema é marcado pela centralização, burocracia
excessiva e tendências absolutistas.
A estatolatria é tão determinante que, além de orientar o nosso
arranjo Estado/Sociedade, sustenta inclusive o padrão dominante de pensamento
no Brasil. Resumidamente, a matriz estatolátrica nos relega as seguintes
crenças e práticas:
· A crônica determinação de objetivos não-econômicos para a
atividade econômica, não importando se isto representa enormes restrições à
liberdade econômica e a livre iniciativa. A estatolatria, no campo
econômico, além de criar um campo propício para a invasão estatal à liberdade
individual, ajuda a consolidar a prática de apropriação de recursos da
sociedade por parte do Estado;
· O Estado brasileiro ficou, desde sempre, livre para definir seus
próprios limites de intervenção. A política acaba por se identificar
completamente com a idéia de Estado, que se transforma em fim da ação política,
e não meio. Possuímos patológica deficiência para pensar e aceitar a economia e
a sociedade se organizando a partir de suas próprias lógicas;
· O sistema cultural que se origina tendo a estatolatria no centro
legitima e reforça no imaginário coletivo um conjunto de crenças e valores que
além de referidos ao Estado representam reais obstáculos ao desenvolvimento
sócio-econômico. Exemplificando: bem comum, justiça social, desenvolvimento,
geração de empregos, crescimento econômico são todos creditados como
responsabilidade e missão do Estado. Em contraposição, a estatolatria cria o
ambiente propício para a estigmatização da atividade econômica e empresarial.
Ou seja, o trabalho é visto como sinal de inferioridade, enriquecimento como
condição injusta e lucro como exploração do semelhante.
Como prova do efeito danoso da estatolatria e da existência desse
sistema de crenças e valores, podemos citar a recente pesquisa de opinião
veiculada pela revista Exame onde, para o cidadão comum, a missão de
uma empresa é: 1) gerar empregos; 2) desenvolver o país; 3) desenvolver
trabalhos comunitários; 4) justiça social; 5) pagar impostos; (...) 7) dar
lucro.
B. Estatolatria e Política no Brasil
Como visto, a estatolatria faz com que, no Brasil, a política fique
umbilicalmente ligada à idéia de Estado, que vira fim em si mesmo.
Concomitantemente, como a matriz dominante de pensamento não consegue admitir
sociedade e economia vivendo com base em suas lógicas respectivas, o brasileiro
acaba por sofrer de uma endêmica necessidade de messianismo. Em outras
palavras, o desproporcional poder estatal e sua reiterada prática de invadir
qualquer campo da vida consolidaram a
idéia de que:
o Estado deve e vai resolver
todo e qualquer problema do País, sejam eles de que ordem for. O cidadão abdica
servilmente de sua liberdade e iniciativa e passa a, de certa forma, aceitar e
cobrar uma ação paternalista do Estado como se isso fosse natural ou a única
forma de relação possível entre cidadão e aparato estatal.
Ainda no tocante a esta relação, como a invasão estatal, se aceita
plenamente, geraria a mais completa asfixia, o brasileiro desenvolveu o chamado
“jeitinho”, ou seja, uma forma célere e pouco ortodoxa de escapar das amarras
estatais. Não queremos negar que o “jeitinho” possui uma grande importância
sociológica, pois é um método que permite a acomodação social sem a necessidade
de rupturas traumáticas. O que procuramos atentar é que a onipresença do
“jeitinho” revela o seguinte:
a) o enorme formalismo da sociedade
brasileira. Formalismo, como definiu Riggs, é o “grau de discrepância entre o
prescritivo e o descritivo, entre o poder formal e o poder efetivo, entre a
impressão que nos é dada pela constituição, pelas leis e regulamentos,
organogramas e estatísticas, e os fatos práticos e reais do governo e da
sociedade”. A reiterada discrepância entre os valores ostensivos, os discursos
e as reais atitudes e comportamentos dos brasileiros é constante. Como disse
Valverde, “o Brasil é, essencialmente, uma sociedade formalista, preocupada com
as aparências e pouco atenta à coerência entre estas e a substância dos atos e fatos”.
Estas incoerências são tão freqüentes, tão presentes, tão arraigadas que
influenciam nosso modo de pensar a tal ponto que o duplipensar orwelliano chega
quase a ser pré-requisito para ingressar em nossa cena cultural;
b) a constante presença do jeitinho, em
suas mais variadas formas, demonstra que, no Brasil, a lealdade familiar e
tribal ocupa o lugar dos valores cívicos como norte do comportamento. Lei,
ordem, Constituição são elementos que significam pouco em nossa conduta. Com
certeza, reside aí uma das maiores dificuldades para a construção e
fortalecimento das instituições nacionais, bem como, para a democracia
brasileira;
c) a reiterada prática e aceitação do
“jeitinho” nos levaram a desenvolver uma patológica afinidade pelas fraudes.
Falsificações, “pirataria”, desrespeito a contratos e a palavra empenhada são
atitudes que não sofrem qualquer reprovação moral. Aliás, é provável que os que
respeitem a lei e a ordem constitucional sofram mais preconceitos e reprovações
morais do que aqueles que as transgridem. Obter vantagens indevidas,
praticar contravenções e crimes de pequena monta, levar vantagem em tudo são
atitudes que já não nos causam estranheza. Talvez vivamos o processo descrito
por Nietzsche e só nos resta dois tipos de pessoas: os super-homens e os
últimos-homens.
No campo teórico, ao se estudar a política, há uma aceitação
generalizada e inercial de que o ponto de partida é Maquiavel. A obra
maquiavélica, ao fundar o campo da política, o faz justamente a diferenciando e
separando da moral. Dissociar a moral da política é aceitar que a prática
política não se sujeita a qualquer reflexão ou limite de moralidade. A porta
para legitimar nossos crônicos problemas de corrupção, clientelismo e rompantes
totalitários está aberta. Paralelamente, fingimos não existir uma série de
importantes e clássicos trabalhos e pensadores políticos. Althusius, La Boétie,
Van Humboldt, Kirk e tantos outros são ilustres desconhecidos no nosso suposto
debate.
No terreno da política propriamente dita, com o fim da ditadura e o
estabelecimento de eleições diretas, o marketing eleitoral passou a ter
importância desproporcional em um pleito. Em uma sociedade dominada pela
estatolatria, onde desenvolvimento, empregos, bem-comum e justiça social são
todos tidos e havidos como responsabilidade estatal todo e qualquer
candidato ao Executivo é vendido ao eleitor como aquele que irá resolver todos
os problemas de uma determinada coletividade (seja o Município, o Estado-membro
ou o País). Retórica e slogans acabaram por ser mais decisivos em uma eleição
do que projetos ou soluções viáveis. E a participação política, para um enorme
contingente de brasileiros, se inicia e se encerra com o voto.
Esse é o cenário que nos cerca e dentro do
qual teremos que fazer nossas próximas escolhas.
As
opções são claras:
Ou começamos a superar os obstáculos culturais estatólatras, ou é
bem provável que a profecia que sustenta que o Brasil
“sairia do atraso para a
barbárie, sem conhecer o que é civilização”
se concretize.